O CRISTIANISMO ORTODOXO & A “CULTURA DO CANCELAMENTO”

Quando recentemente publiquei no Instagram a respeito de “Shtisel”, uma série da Netflix de que gostei, alguém que comentou sob o meu post sugeriu que “todos se rebelassem contra a Netflix e cancelassem suas contas”. Porque, continuou ele ou ela, “Somos todos cúmplices se estivermos assistindo Netflix e não protestarmos contra seu filme…”.

Não assisti, nem sequer ouvi falar do tal filme da Netflix mencionado no referido comentário. Mas eis porque é que eu, como cristã Ortodoxa, não cancelaria a minha assinatura da Netflix por causa disso. E é também por isso que não deixaria de usar o Google ou a Amazon ou o Facebook, apesar dos seus aspectos maléficos:

Tradicionalmente, os cristãos não abraçaram uma “cultura de cancelamento”, no que diz respeito à tecnologia e à arte mais proeminentes e acessíveis de seu tempo. Eles têm preferido utilizá-las em seu benefício, à luz da fé cristã.

Tomemos, por exemplo, a tecnologia que é o calendário. Nós, como cristãos, chamamos a este dia da semana, no qual escrevo esta postagem, “Wednesday” em inglês, apesar de lhe ser dado o nome em honra e celebrar o deus supremo germânico Odin (Wodin em inglês antigo), marido de Frigga, a deusa germânica do amor, a quem a outro dia da semana é dado em honra o nome de “Friday” em inglês. Será que nós, ou quaisquer gerações de anglófonos cristãos antes de nós, sugerimos para que “todos se rebelassem contra” os nomes pagãos dos nossos dias de semana em inglês? Não. Em vez disso, em minha própria tradição bizantina, jejuamos às quartas e sextas-feiras, honrando a Cruz e a Mãe de Deus (os dois temas de cada quarta e sexta-feira da semana litúrgica bizantina), os mistérios centrais do Cristianismo, mesmo quando chamamos a estes dias chamados “Wednesday” e “Friday” em inglês em honra a divindades pagãs, sem necessidade de “cancelar” essa tradição pagã, a fim de viver a nossa. Aqueles de nós que celebram as festas litúrgicas conforme o Calendário Juliano Tradicional também cristianizaram este calendário pagão juliano, introduzido por um imperador pagão romano, Júlio César, e inspirado pela mentalidade pagã de seu tempo.

Estou confundindo “alhos com bugalhos”, ao comparar o uso de Netflix, Google, Amazon, etc., e o uso de sistemas de calendário pagãos? Não. Estou comparando as tecnologias não Ortodoxas mais proeminentes e acessíveis de vários tempos, que nos proporcionaram a capacidade de funcionar, ser informados, educados e sobreviver neste “mundo”, mesmo quando professamos a verdade da nossa fé. Porque nosso Senhor Jesus Cristo assim o quis, para não sermos afastados deste mundo, mas sim santificados pela verdade, como Ele orou ao Pai: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal… Santifica-os na verdade” (João 17,15.17a).

Nossa tradição também aceitou, em parte, os escritos e outras contribuições artísticas de fontes não canônicas, apócrifas e não-santificadas. Por exemplo, a maioria das nossas festas marianas (em honra da Mãe de Deus) são inspiradas pelo Protoevangelho apócrifo de Tiago; temos cânones no nosso códice canônico que são da autoria do Papa Teófilo de Alexandria (+412), que entre os seus crimes perseguiu São João Crisóstomo; temos um hino nos nossos ofícios litúrgicos do Domingo de Ramos que é da autoria do imperador iconoclasta Teófilo (+842), e assim por diante.

O meu ponto é que não temos a “cultura do cancelamento”, que cancela ou apaga da nossa atenção qualquer fonte, seja pagã ou herege ou mesmo criminosa, quando tem algo de bom para oferecer, que podemos usar, iluminada e santificada por nossa fé e verdade. E é por isso que não cancelo a minha assinatura da Netflix, e continuo a usar o Google, a Amazon, e todo o restante.

Versão brasileira: João Antunes

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